sábado, 31 de janeiro de 2015

Painel "Ribeira Negra" - Júlio Resende - Alfândega do Porto



Composto por 40 painéis, de 3 metros de altura por 1 metro de largura, esta peça constitui um dos ensaios para o grandioso painel azulejar Ribeira Negra, situado junto à entrada leste do Túnel da Ribeira. A ideia original partiu de uma sugestão do maestro Álvaro Salazar, à época diretor das Jornadas Internacionais da Oficina Musical. Concebido em 1984, em apenas 10 dias, e em condições exíguas de trabalho, começou por estar exposto na Cooperativa Árvore e, depois, no Mercado Ferreira Borges. Nos dois anos seguintes, Júlio Resende executou uma série de estudos: um datado de cerca de 1985 (papel craft, aguarela sobre, 34X269 cm, Coleção do Autor); outro também de 1985 (papel vegetal, tinta-da-china e aguada, 37,5X390 cm, Coleção do Autor), um terceiro de 1986 (papel vegetal, tinta-da-china e lápis de cor sobre, 32X277 cm, Coleção do Lugar do Desenho). Em 1986 foi criado o mencionado painel cerâmico, em grés vidrado, na Empresa Cerâmica do Fojo (Vila Nova de Gaia), inaugurado a 21 de junho de 1987.

Descemos a calçada íngreme para a revelação.
De alto a baixo, diante de nós, uma proliferação de formas subjugadas na mancha poderosa da neutralidade granítica.
Um tom subindo do rio, irrompe num desafio à severidade.
O teu silêncio toca-me. Entendo-o. Chegam-nos longínquos sons de multidões despertadas, de sirenes preventivas, de máquinas deslubrificadas, de cães eufóricos. Um mundo emergindo do cinza neutro.
Descemos em lentidão; até ao colosso de ferro em largo gesto. O percurso do seu traçado fez-se sobre o caudal marcado pelo destino.
Eis que entrámos no enquadramento da verdade.
(...)
Gente que deixa em nós a marca granítica da sua alma rude e transparente, mostrando aquilo que é, exactamente como a terra que lhe foi berço.
Ficas solencioso porque alguma reflexão íntima te domina.
A verdade é mesmo isto.


RESENDE, Júlio - «Pulsar do Granito», "Ribeira Negra". Porto: Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende, 1998, p.3-5


A Ribeira Negra, que eu tenho aqui no Porto, é a segunda versão da Ribeira, que eu pintei, com quarenta metros. É uma obra que nunca foi vista em Lisboa. Esteve em Madrid, uma vez. É um trabalho curioso. Foram 120 metros quadrados, quarenta por três, mas que foram feitos em segmentos de quatro metros cada um, aqui, num atelier pequenino de cerâmica. Dispunha de quatro metros, mandei pôr a régua e cortei o pano, que ia suspendendo com umas tachinhas e ia pintando e ia pintando. Foi uma coisa que saiu sem eu estar a ver o conjunto, embora sentisse mais ou menos o ritmo. Mas aquilo não tinha o espaço adequado. Medi a passos o local para onde foi feito o painel e vi o que precisava de quarenta metros. Fiz aquilo rapidamente, em quinze dias.

Júlio Resende na Coleção de Arte Millennium BCP. (s.l.): Millennium BCP, 2006, p.51


Corri à Rua das Flores a comprar uma peça de lona, e disparei para o atelier. Dispunha de uns escassos 10 dias para 120m2 do painel. Polivinil seria a técnica; negro de fumo e óxido de zinco, os pigmentos. De 4 em 4 metros, fui pintando sucessivamente a extensão dos 40 metros de parede, sem qualquer hipótese de voltar atrás. Ou ter uma visão de conjunto.
Sabia dos riscos mas tinha o pressentimento que valeria a pena corrê-los, desde que a emoção tivesse a despoletá-la a razão, e essa eu tinha-a... A "Ribeira Negra" cumpria-se por si mesma, eu diria...


Exposição Júlio Resende. Pintura. Desenho. Almada: Câmara Municipal de Almada, 1991, p. 73